Os desafios da mobilidade no Rio de Janeiro ganham mais desdobramentos em um mundo cada vez mais digital. Entre o trânsito caótico e a vida urbana agitada, o uso de aparelhos eletrônicos tanto para lazer quanto para trabalho se tornou hábito corriqueiro na vida dos motoristas. Com áudios e “zaps” trocados, a atenção se volta para contatos virtuais, muitos se esquecem do real, e, principalmente, da condução segura do veículo. E esses segundos de desatenção podem ter consequências para toda a vida, não apenas para o imprudente, mas para todos à sua volta.
É o que conta o estudante de Educação Física Mário Gonzaga, 24 anos, que sofreu um pequeno acidente de carro recentemente. “Estava de carona com meu pai e ele, por acaso, estava sem óculos. Foi tentar ler uma mensagem enquanto estava dirigindo e o sinal fechou. Em questão de milésimos, ele perdeu a atenção e bateu no carro da frente. Foi uma colisão média, felizmente não houve nenhum ferido”, conta o morador de Vila Valqueire.
Justamente por situações como a relatada por Mário que essa relação do celular como extensão do corpo vem chamando atenção e preocupando os especialistas. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Ibope Conecta, 15% dos entrevistados revelaram que não conseguem ficar sem smartphone em momento algum.
Segundo a psicóloga Thaís Perrota, o vício em celular, chamado de “nomofobia” – medo de ficar sem o aparelho -, pode ser causado por diversos fatores como baixa auto estima, dificuldade em relacionamentos sociais, patologias como ansiedade e depressão, e, além disso, pode estar associado a dependência do sistema de recompensa das redes sociais, como likes, visualizações e retuítes.
“Trecho de fala da especialista”

WhatsApp no centro da vida dos brasileiros
No Brasil, a rede social Whatsapp, conhecida pela troca de mensagens em tempo real, viralizou em pouco tempo, ganhando popularidade e uma legião de usuários. A plataforma, que chegou ao Brasil em 2009, teve seu boom em 2014, quando a empresa foi comprada pelo dono do Facebook, Mark Zuckerberg, que aperfeiçoou o aplicativo ao colocar vídeo-chamadas como mais uma forma de interação.
O aplicativo ficou em primeiro lugar no ranking de rede social mais utilizada, e a pesquisa Digital 2022 indica que 96,4% dos brasileiros utilizam o “rei dos mensageiros”, equivalente a 165 milhões de usuários conectados e engajados com a rede. Apesar dos inúmeros benefícios do app, a tecnologia pode se tornar perigosa, quando utilizada de forma incorreta.
Um dos grandes exemplos de maus hábitos é a condução de veículos com o auxílio de apenas uma mão ao volante – pois a outra, segura o celular. Além de ser considerado um ato infracional grave para o Código de Trânsito, este é um comportamento que deveria ser evitado por razões de segurança. Segundo o Observatório Nacional de Segurança Brasileira, estima-se que a maioria dos acidentes decorrem de falhas humanas, sobretudo, a falta de capacidade perceptiva (distração).
Um dos motoristas que já cometeu esse erro foi o empresário Felipe Santos, de 34 anos, que, indo a uma partida de futebol na Tijuca, derrapou com o carro e quase saiu da pista na Grajaú-Jacarepaguá por mexer no WhatsApp enquanto dirigia. “Fui fazer a curva e meu pneu estava meio careca, tudo errado, né? Só que eu consegui fazer o carro voltar, bati na lateral traseira de um carro que estava na minha frente, tentando segurar meu carro pra ele não rodar”, o morador do Recreio descreve, lembrando, ainda, ter pagado o conserto do carro no qual bateu e que, apesar de o acidente não ter deixado feridos, o susto foi grande. “Voltei branco pra jogar o futebol e ainda perdi. Fiquei bolado”, brinca.

Segundo levantamento feita pela Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), a prática de digitar uma simples mensagem de texto, faz com que veículo avance diversos metros sem a devida atenção do condutor, que, em média, fica 4,5 segundos sem olhar atentamente a via, podendo percorrer até 100 metros de forma imprudente. Essas quantidades de tempo e distâncias são suficientes para causar acidentes, atropelar pedestres, ciclistas ou colidir com outros veículos.
De acordo com a base de dados disponibilizada pelo “Mobilidados”, os acidentes de trânsito na região metropolitana do Rio, que totalizavam 892 mortes em 2008 (quando não existia Whatsapp), aumentaram 17,04% em 2014, no auge da plataforma, contabilizando 1.044 vidas perdidas, sendo 387 pedestres, 7 ciclistas, 103 motociclistas, 42 ocupantes de automóveis, e 505 categorizados como “outros”. Apesar de assustadores, os números não parecem ser o suficiente para que tais casos diminuam. Nesse panorama, celular e pedestre também formam uma dupla perigosa, para além do risco de furtos e assaltos no Rio de Janeiro.
O geográfo, Adilson Braz, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que o Rio de Janeiro sofreu uma urbanização acelerada, acompanhada de uma falta de planejamento, resultando em um processo chamado de “macrocefalia urbana”. “É caracterizada por um inchaço populacional que implica em prejuízo para diversos setores, sobretudo na infraestrutura, uma vez que, a cidade cresceu, e a estrutura não acompanhou”, ele explica. Dessa maneira, a mobilidade urbana é atingida e o trânsito fica mais caótico, impactando até mesmo o ciclismo, considerado um transporte alternativo, tornando o perigo inerente à prática.
Foi o que aconteceu com Luiz Aranha, de 24 anos, morador do Flamengo. Ele conta que foi atingido por um carro enquanto voltava do colégio para casa ao atravessar um cruzamento com uma pista dupla. “Eu vi que um carro estava parado, com o vidro todo escuro. Como não vinha carro de nenhum lado, eu segui. Quando fui, o carro avançou do nada pra fazer o retorno, bateu na bike, amassou ela toda, e me jogou um pouco para longe”, conta.
O estudante, que sofreu ferimentos por todo o lado direito do corpo, foi socorrido pelo motorista e por transeuntes que se assustaram com o som do impacto. “Graças a Deus não ocorreu nada grave, ele pediu mil desculpas e disse que estava distraído no celular”, relata Luiz, acrescentando que o motorista deixou um telefone de contato e deu a ele uma bicicleta nova. “Hoje, quando eu mexo no celular, tenho muita cautela. Só mexo quando estou parado, e se for pra atender uma ligação, coloco no Bluetooth”, conclui.
No entanto, é importante ressaltar que qualquer contexto envolvendo o celular em via pública apresenta riscos, pois a perda de noção auditiva também gera desvio de atenção, uma vez que existem inúmeras imprevisibilidades que podem ocorrer durante um trânsito, onde uma das principais formas de aviso são justamente alertas sonoros, como as buzinas.
Essa problemática da combinação do aparelho telefônico com a condução de veículos está presente da zona sul à zona norte da cidade, conforme conta o gerente de restaurante Diego Mariano, de 28 anos, que, ao atravessar a rua, no Méier, quase foi atropelado por um carro, o qual havia avançado o sinal vermelho. “Sorte que eu reagi rápido e consegui me impulsionar pra frente. Só tive uns arranhões e o cara nem parou pra prestar ajuda. Eu lembro nitidamente dele com o celular na mão, freando e o celular voando no para-brisa”, ressalta o morador do Engenho de Dentro que, ainda, relembra de outra ocasião na qual foi arrastado por um automóvel.
“Eu estava voltando de bicicleta do trabalho para casa, parei no sinal para um pedestre atravessar e o cara do carro não parou. Ele saiu me varrendo. O celular dele até quebrou devido ao impacto. Ele não olhou o sinal o vermelho, não olhou que tinha gente na frente. Tudo por causa do aparelho. Ralei meu joelho, cotovelo, abri meu queixo, e minha bicicleta ficou igual a letra U, toda torta”, Diego detalha.
Diante deste panorama, é necessário que os cidadãos – condutores, passageiros e pedestres – tenham cada vez mais consciência sobre os riscos do uso de celulares – e outros aparelhos – ao volante, uma combinação que se torna uma potencial arma devido ao uso imprudente desses aparatos tecnológicos, conforme mostram os inúmeros dados e relatos.
Metodologia:
Foi colocado em análise os dados tabulares brutos de mortes totais em sinistros de trânsito (total e por tipo de usuários, sendo estes: ciclistas, pedestres, motociclistas, ocupantes de automóveis e outros) e população de todos os municípios brasileiros disponibilizado pela base de dados do site “MobiliDados”. Após a limpeza da planilha, os dados foram filtrados para restringir a pesquisa apenas para o município do Rio de Janeiro, e foi realizado um comparativo através de cálculos percentuais entre os anos 2008 – Era em que não existia o Whatsapp – e sua ascensão, em 2010, quando a plataforma foi democratizada e estava disponibilizada para usuários além da Apple. Após um massivo investimento de Mark Zuckemberg em 2014 na rede social, nota-se o boom e popularização da rede e, cruzando os dados e contextos, os valores da atmosfera de mortes em acidentes de trânsito analisados também aumentaram em graus percentuais nesses períodos.
Por Beatriz Escorcio Gomes (Jornalismo de Dados)
Referências:
CUNHA, Donata. O uso do telefone celular como um fator de distração na direção de veículos. Monografia apresentada à Universidade Paulista/UNIP. Maceió/AL, 2013.
LEIA TAMBÉM: Podcasts: um novo hábito de consumo para driblar a pandemia
LEIA TAMBÉM: Queda na taxa de mortes violentas na cidade não diminui sensação de insegurança